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Sindifisco, 13/04/2021

Auditoria Cidadã: saiba o porquê o Sistema da Dívida é mecanismo de dominação

BREVE HISTÓRICO DA DÍVIDA DOS ESTADOS ATÉ A PROPOSTA DE “REGIME DE RECUPERAÇÃO FISCAL” REVELA ATUAÇÃO DO SISTEMA DA DÍVIDA COMO MECANISMO DE DOMINAÇÃO – POR MARIA LUCIA FATTORELLI E COLABORADORES(AS), VOLUNTÁRIOS(AS) E APOIADORES(AS) DA AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA
 

Breve histórico da Dívida dos Estados até a proposta de “Regime de Recuperação Fiscal”

revela atuação do Sistema da Dívida como mecanismo de dominação

 

por Maria Lucia Fattorelli e colaboradores(as), voluntários(as) e apoiadores(as) da Auditoria Cidadã da Dívida: Adaedson Costa, Adriano Campos, Adriel Gael, Aldair Oliveira de Andrade, Ana Lúcia da Silva Gomes, Ângela Lobo, Ângelo Balbino, Antônio Alves Neto, Antônio Augusto Rosa Medeiros, Antônio José Vale da Costa, Apoena Faria, Carlos Rogério de Carvalho Nunes, Carmen Medeiros Pedroso Prates, Cícero Nogueira da Silva Neto, Clarissa Flávia Santos Araújo, Cleuza Maria Faustino do Nascimento, Eduardo Brasileiro, Eduardo Zanata, Elciclei Faria dos Santos, Elias Menta Macedo, Erica Oliveira de Souza, Gaspar Bissolotti Neto, Gesa Linhares Corrêa, Gilman Ramos S. Campos, Gleice Carlos Nogueira Rodrigues, Jodar Pedroso Prates, José  Francisco Rodrigues, José Alcimar de Oliveira, José Menezes Gomes, Josué Martins, Laurizete Araújo Gusmão, Lídia de Jesus, Lindemberg André Silva, Luiz Artur de Oliveira, Luiz Fernando Reis, Lujan Maria Bacelar de Miranda, Márcio Freitas, Marcos Antônio Tavares Soares, Maria Alice Acosta, Maria Aparecida Meloni, Maria Osanette de Medeiros, Maria Rosária Barbato, Maria Rosária do Carmo, Maurício Santos, Moacir Lopes, Neide Solimões, Nelcir André Varnier, Nelson Araújo Filho, Nelson Menezes Florisbal, Nilton Naziazeno Monteiro, Paulo Lindesay, Rafael Muller, Rivânia Lucia Moura de Assis, Rodolfo Valentim Machado, Rodrigo Ávila, Sergio Trentin, Silvia Leticia da Luz, Valmiene Florindo Farias Sousa, Vânia Márcia de Sousa Leal Nunes.

 

Introdução

O problema da dívida dos estados vem se agravando desde a década de 90, quando sofreu o impacto dos erros de política monetária adotada pelo Banco Central. Este elevou absurdamente as taxas de juros sob a justificativa de “combater a inflação”, a qual, na verdade, era provocada por outros fatores não influenciados pelos juros.

 

Em seguida, essa dívida inflada foi submetida a “refinanciamento” que somou obscuros rombos de bancos estaduais e aplicou condições onerosíssimas que fizeram essa dívida ilegítima se multiplicar por ela mesma e submeter os estados a contínuas perdas cada vez mais humilhantes. A recente proposta de “Regime de Recuperação Fiscal”, além de ter efeito contrário ao que o nome indica, submete os Estados a conselho de supervisão estranho à estrutura estatal e que assume poderes até superiores às autoridades eleitas.

 

Em 2017, o Estado do Rio de Janeiro aderiu à primeira versão do chamado “Regime de Recuperação Fiscal” e o resultado tem sido um desastre, pois tem representado mais cortes de investimentos sociais e direitos dos servidores públicos para privilegiar ainda mais o pagamento de uma dívida ilegítima, jamais auditada pela sociedade civil. Agora, o Rio de Janeiro e outros estados planejam aderir a uma nova versão desse “Regime”, ainda mais nefasta.

 

Face aos diversos e graves indícios de irregularidades já comprovados, é urgente a necessidade de exigirmos completa auditoria da dívida dos estados e também da dívida federal, em especial após a aprovação da EC 109, que coloca na Constituição Federal a necessidade de todos os entes produzirem ajuste fiscal, privatizações e outras medidas para garantir a “sustentabilidade da dívida”.

 

Refinanciamento da Dívida dos Estados na década de 90 e contribuição da CPI da Dívida para o debate da dívida dos Estados

 

Na década de 90, a política monetária do governo federal (com altíssimas taxas de juros) multiplicou a dívida dos estados com o setor financeiro. A partir de 1997, o governo federal submeteu os estados a um conjunto de pacotes: (1) o refinanciamento dessas dívidas em condições onerosíssimas, vinculado a um rigoroso programa de ajuste fiscal (PAF); (2) a privatização de diversos ativos estaduais (PED); e, ainda, (3) a transferência do obscuro passivo dos bancos estaduais para a responsabilidade dos estados (PROES). 

 

Por meio da Lei 9.496/1997 e da Medida Provisória 2192-70, tanto aquela dívida inflada pela política monetária do Banco Central, como também o passivo dos bancos estaduais, se transformaram em “dívida dos estados com a União”, o que marca a origem ilegítima dessa dívida, tendo em vista que 55% do valor refinanciado pela União correspondeu a passivos dos bancos, verdadeiros “rombos” que nunca foram auditados e têm sido pagos pelo povo.

 

O montante refinanciado pela União passou a ser cobrado com juros compostos (juros sobre juros) altíssimos: 6% a 7,5% ao ano mais a inflação medida pelo IGP-DI. Como resultado, de 1997 a 2019 os estados pagaram à União R$ 357 bilhões de juros e amortizações. Mesmo assim a dívida subiu de R$ 112 bilhões para R$ 559 bilhões. Ou seja, a dívida foi paga 3 vezes e seu estoque se multiplicou por 5 vezes![1] A União utiliza tais recursos exclusivamente para pagar a também questionável dívida pública federal, que também deveria ser auditada com participação social.

 

Este mecanismo foi denunciado pela Auditoria Cidadã da Dívida durante a CPI da Dívida na Câmara dos Deputados em 2009/2010, o que provocou uma movimentação política para a mudança desta situação. Pressionado, o Poder Executivo apresentou à Câmara dos Deputados, em 3/1/2013, o Projeto de Lei Complementar 238/2013, no sentido de recalcular o estoque da dívida desde seu início pela Taxa Selic, e, a partir dali mudar o indexador de tais dívidas para o IPCA mais juros de 4% ao ano, projeto esse que demorou quase dois anos para ser transformado na Lei Complementar 148, em 25/11/2014. Porém, a AGU interpretou que essa lei era apenas “autorizativa” e não obrigaria o Poder Executivo a implementar tais medidas, o que foi corrigido em 5/8/2015, com a Lei Complementar 151.

 

Oportunidade perdida pelo STF

A regulamentação da Lei Complementar 151/2015 demorou mais quase 5 meses. O Decreto 8.616, de 29/12/2015, que tratou dessa regulamentação, foi alvo de questionamento junto ao STF por parte de vários governadores, pelo fato de prever juros compostos para o recálculo do estoque da dívida.

 

O Supremo Tribunal Federal passou a conceder liminar a vários estados, permitindo o recálculo da dívida com juros simples desde o início do refinanciamento, o que praticamente anularia tal dívida em quase todos os estados. Naquela ocasião, membros da Auditoria Cidadã da Dívida visitaram todos os gabinetes dos ministros do STF, apresentando Nota Técnica (Ver https://auditoriacidada.org.br/auditoria-cidada-e-entidades-apoiadoras-vao-ao-stf-denunciar-divida-dos-estados/ ) e o livro “Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados”, que compila parte da experiência adquirida durante nossa assessoria à CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados.

 

A oportunidade de enfrentar as ilegalidades que permeiam a renegociação das dívidas dos estados foi perdida.  Após pressão de setores do governo federal, o STF derrubou as liminares e jogou os estados na “livre negociação” com a União, que, por deter o instrumento da cobrança daquela dívida refinanciada, obviamente impôs suas condições aos estados, enviando o PLP 257/2016 ao Congresso Nacional, cuja aprovação resultou na Lei Complementar 156, de 28/12/2016.

 

Conforme analisado em artigo da época (https://auditoriacidada.org.br/conteudo/novela-da-divida-dos-estados-demanda-urgentemente-uma-completa-auditoria/) o texto aprovado no Congresso concedeu prorrogações de prazo para o pagamento de dívidas dos estados e DF com a União, impondo, em troca, o corte de gastos sociais e direitos dos servidores públicos estaduais, estabelecimento de teto de gastos  e a desistência de ações judiciais atuais e futuras que questionem tais dívidas. Dessa forma, o governo federal adota postura idêntica à do FMI, quando impõe severas políticas neoliberais em troca de refinanciamento de questionáveis dívidas, repletas de indícios de ilegalidades, e que beneficiam principalmente o setor financeiro.

 

Regime de Recuperação Fiscal: uso da dívida para submeter ainda mais os estados

A Lei Complementar 159 (de 19/5/2017) instituiu o “Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal”, que consistia em promover postergações nos pagamentos das parcelas das dívidas dos estados com a União (evidentemente, com a incidência de juros sobre juros), em troca do corte de investimentos sociais e direitos dos servidores públicos estaduais, além de mais privatizações de patrimônio estadual estratégico.

 

Desta forma, o “Sistema da Dívida” opera como uma chantagem sem fim, se aproveitando da incidência de juros sobre juros para condicionar postergações de pagamentos à adoção de medidas nefastas, contrárias aos interesses da sociedade, do próprio Estado e do nosso desenvolvimento socioeconômico.

 

No contexto da pandemia, a Lei Complementar 173/2020 suspendeu o pagamento das dívidas dos estados refinanciada pela União e, de forma sorrateira, sem debate algum, inseriu a possibilidade (Art. 6º) de securitização de contratos de dívidas dos entes federados, já existentes e garantidas pela Secretaria do Tesouro Nacional. Tal fato é muito grave, pois instala o esquema de desvio de recursos por fora dos controles orçamentários, como abordamos em artigo na época https://auditoriacidada.org.br/conteudo/securitizacao-consignado-turbinado-de-recursos-publicos/ .

 

Por fim, a Lei Complementar 178/2021, aprovada em votação relâmpago (na Câmara e Senado em um só dia, em 15/12/2020), fez amplas modificações no denominado “Regime de Recuperação Fiscal”, e exige estudo aprofundado, pois perpetua por até 9 (nove) anos a vigência de rigoroso ajuste fiscal para que os estados tenham como efetuar o pagamento da dívida refinanciada pela União, em condições que nitidamente ferem o federalismo e até a Constituição, na medida em que submete os Estados a “Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal” que poderá ser composto por pessoas estranhas à estrutura do Estado (apenas 1 membro é indicado pelo TCU. Quem serão os demais? Virão do mercado financeiro?) e terá amplos poderes e acesso completo às informações do estado, podendo inclusive tomar decisões que obrigarão o estado a efetuar cortes de investimentos sociais, corte de direitos sociais e realização de privatizações.

 

Neste momento, estados como Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Sul (RS) e Minas Gerais (MG) atuam para aderir a este novo regime da Lei 178/2021. O RJ já ingressou no regime em 2017, como mencionado, e agora tenta ingressar novamente; o RS aprovou projeto de lei estadual e MG tenta aprovar, no sentido de entregar a gestão de suas finanças ao conselho de que trata a Lei 178/2021.  Em seu projeto de lei, o governo de MG, por exemplo, chega a propor a aplicação do “teto de gastos” por 3 anos, o que irá congelar o volume dos investimentos sociais, e, na prática, pode levar à redução drástica dos recursos de algumas áreas, como estamos verificando na esfera federal com a área da educação, por exemplo.

 

O costumeiro discurso oficial de que “a adesão a tal regime implicaria a ‘economia’ de tantos bilhões de pagamentos da dívida com a União”, não se confirma na prática. Na verdade, não existe tal “economia”, já que todas as parcelas suspensas ou adiadas terão que ser pagas posteriormente com juros compostos e correção monetária. Além disso, ademais da ilegitimidade de grande parte do valor refinanciado, que incluiu passivo de bancos estaduais, tais dívidas já foram pagas várias vezes, tendo os estados direito a serem ressarcidos do que pagaram a mais.

 

Estados lesados pela Lei Kandir

Além de lesados por décadas em decorrência das ilegitimidades e abusos do processo de refinanciamento feito pela União, os Estados têm sido lesados também em relação ao ressarcimento devido pela União aos Estados em relação à Lei Complementar 87/1996, a chamada “Lei Kandir”.

 

As perdas não ressarcidas, calculadas no período de 1996 a 2016[2] somaram R$ 549 bilhões. Estados fizeram um acordo rebaixado, mediante o qual irão receber da União cerca de apenas 10% do que teriam direito, e em 18 parcelas! O STF participou desse acordo! A recente EC 109 revogou o ressarcimento das novas perdas dos Estados com a isenção do ICMS o rico setor primário-exportador. Todo sacrifício decorrente desses péssimos acordos recai sobre a sociedade.

 

Recursos existem, e de sobra: apesar do repetido argumento de que o governo federal não teria recursos para pagar o ressarcimento da Lei Kandir aos estados, atualmente o governo federal dispõe de R$ 1,6 TRILHÃO em caixa, na Conta Única do Tesouro Nacional[3].

 

Entretanto, a EC 109 destina esse valor ao pagamento da questionável dívida pública federal, que deveria ser auditada conforme manda a Constituição Federal, e que tem consumido mais de R$ 1 trilhão de juros e amortizações todos os anos, destinados principalmente a grandes bancos e investidores.

 

Conclusão

Esse breve resumo mostra claramente que a dívida dos estados refinanciada pela União, apesar de ilegítima, já foi paga diversas vezes, e tem servido de justificativa para contínuos ajustes fiscais cada vez mais rigorosos, além de perda de patrimônio público estratégico.

 

Agora, representa o fim da autonomia dos estados, que ficarão submetidos a conselho supervisor composto por pessoas que poderão vir até do mercado financeiro. Por outro lado, os créditos dos estados perante a União têm sido objeto de verdadeiro calote!  

 

Apesar de todos os indícios de irregularidades já comprovados tanto na dívida pública federal como dos estados, a EC 109 coloca na Constituição Federal a necessidade de todos os entes produzirem ajuste fiscal, privatizações e outras medidas para garantir a “sustentabilidade da dívida”, o que reforça ainda mais a urgência de exigirmos completa auditoria da dívida dos estados e da dívida federal.

 

“PLANO DE RECUPERAÇÃO FISCAL” NÃO!

PAGAMENTO DE TODAS AS PERDAS DOS ESTADOS COM A LEI KANDIR!